domingo, 30 de dezembro de 2007

DADOR DE ÓRGÃOS

RENNDA



Por volta de 1996 tomei consciência de uma mudança significativa numa Lei que nos diz respeito a todos: a colheita de órgãos humanos. Embora a lei tenha sido alterada em Abril de 1993, duvido que a maioria dos Portugueses saiba que, a menos que se pronuncie ao contrário, após a morte será esquartejado como se faz a um animal no matadouro, a fim de lhe ser retirado o maior número de peças reutilizáveis possíveis.

Não queria ser tão gráfica e estabelecer uma comparação de tão mau gosto. Mas assim é. Já o vi em documentários que passaram pouco na televisão e fiquei espantada e angustiada com a quantidade de utilizações post-mortem que o nosso corpo tem. Desde pele, a cabelo para transplante, a qualquer espécie de músculo, a tendões, à córnea ocular, a membros motores como a maioria já conhece, e claro, a órgãos mais interiores como o coração, os rins, um fígado, os pulmões e não sei mais o quê. Será que deixam alguma coisa?

O que me aflige nisto tudo é que, em vida podem não nos dar valor algum. Um indivíduo pode não receber respeito, ser maltratado e viver desalojado. E é na morte que ele se torna valioso.

Quando era criança e até adolescente, esteve sempre nos meus planos tornar-me dadora. Mas quando soube da lei, os meus sentimentos alteraram-se. Não tive dúvidas: ia buscar o tal papel e tornar-me Não Doadora, nem que fosse para depois desmanchar tudo para que a decisão de o SER pertencer a mim e não a mais ninguém.

Muito bem. E onde se obtém esse documento?
.
Uma ida casual ao ministério de Educação facultou-me essa informação: um indivíduo tem de fazer comunicar ao Ministério da Saúde a sua intenção, e para tal “basta” fazer uma inscrição num Centro de Saúde ou extensão RENNDA, solicitando um “impresso-tipo” que deve estar “devidamente preenchido”. A RENNDA (Serviço Nacional de Não Dadores) é “um serviço informatizado, onde se encontram todos os que manifestaram junto do Ministério sua total ou parcial indisponibilidade em doar post mortem, certos órgãos ou tecidos” (fonte wikipedia, link: http://pt.wikipedia.org/wiki/Transplantação_de_órgãos)

Vou deixar que reflictam no possível significado, a meu ver dúbio, das palavras destacadas em negrito. Por agora vamos “seguir” os passos de quem está interessado em obter este “impresso-tipo”.

O local, conforme reforça este outro link:
Parece simples. Mas claro, não é.

Por centro de saúde conheço o da minha área de residência e aí, onde nem sequer existe um balcão de atendimento geral, ninguém conhece o que é isso de RENNDA e seu respectivo impresso. Noutra ocasião em que me vi num hospital, decidi procurar informações a respeito do procedimento sobre a doação de órgãos humanos após a morte. Perguntei onde ficava a recepção, já que me encontrava nas urgências. Apontaram para fora do hospital, à direita, ao fundo. Caminhei até chegar ao fim da rua, li todas as placas, mas o mais próximo que cheguei de algum lugar foi da casa mortuária.


E assim, mais de uma década se passou e sou ainda, dadora de órgãos á força. Sou por falta de oportunidade, não por falta de conhecimento. Acredito que muitos desconhecem esta lei. E segundo uma notícia da TSF, no ano em que esta lei entrou em vigor, cerca de 20 mil indivíduos fizeram a sua inscrição. Dez anos depois, em 2004, apenas 64. Não 64 mil, mas apenas 64 indivíduos, menos de uma centena. (link: http://www.tsf.pt/online/vida/interior.asp?id_artigo=TSF155488).


Reforço a noção de que poucos portugueses conhecem esta Lei que dita para que fim se destina os seus corpos mortos. Muitos pensam que nem autopsiados são e que o consentimento da família é fulcral para qualquer intervenção invasiva. Enganam-se.
.
Tenho um familiar a ir à faca dentro de dias pela primeira vez na sua vida. Naturalmente, está nervoso com o que desconhece. Calhou ter mencionado que somos todos dadores por lei e este não quis acreditar. Insistiu que o consentimento dos familiares tinha de ser escutado para qualquer procedimento, especialmente este, em que “ele não deu permissão”.


Pois então fica já para se saber: desde 1993 a lei Portuguesa dita que qualquer indivíduo residente em Portugal quando morre é um potencial dador (TSF) e cada pessoa a partir do momento em que nasce adquire este estatuto (Portal da Saúde).


Se tem alguma objecção ou desconforto com esta ideia, tem de se registar no RENNDA. Para tal dirige-se a um qualquer centro de saúde apenas com o seu Bilhete de Identidade. O documento não tem qualquer custo. Lhe será entregue o impresso tipo, que tem somente de preencher e que pode entregar nesse mesmo posto de Saúde.


Simples, mas cruze os dedos e faça figas. Para que consiga os seus intuitos com a facilidade descrita.
.
É que não só o seu centro de Saúde pode nem saber do que está a falar, como o historial português de tudo o que respeita a serviços simples, mas burocráticos, tem a fama que tem porque a merece. Se tivesse de apostar, diria que as pessoas que contactar, desconhecem o paradeiro desse impressso-tipo e estão mal informadas para prestar informações. O melhor a fazer é se certificar que o documento chega mesmo ao Ministério da Saúde, e faça por confirmar se os dados facultados no papel são os mesmos que constam no sistema informático. Quem a/o atender irá com certeza negar-se a isso ou mostrará indisponibilidade e antipatia por tal lhe ser pedido. Tome a iniciativa de fazer a sua própria cópia do documento e guarde-a. Não é necessário um cartão de Não Dador mas, como os sistemas informáticos e os erros humanos acontecem, peça-o á mesma. E prepare-se para enfrentar possíveis juízos de valor, pois aparecem sempre pessoas ávidas para realizar criticas. Podem não ter tido um único gesto altruísta em vida mas acham que o vão ter na morte, e isso lhes dá o direito de julgar a decisão alheia sobre o direito à identidade.


Já não parece tão simples…


O OUTRO LADO DA QUESTÃO

É claro que, por detrás da questão da obrigatoriedade portuguesa de dadores de órgãos, está PORQUÊ estes fazem falta.


Quando reflectimos que existem pessoas necessitadas, o estar em desacordo com o ser dador não nos faz sentir totalmente bem. Afinal, já estamos mortos. Será que faz diferença? Dizem que não se sente nada. O corpo é um casulo em decomposição. Mais vale aproveitar algumas peças para alguém viver mais alguns anos.


Sobre isto, cada um sabe por si.


Outra razão apontada para esta mudança de lei é o tráfego e o mercado negro de órgãos. E aqui já tenho muitos mais dados a dizer sobre a questão!


Ao que parece, nunca deixou de existir escassez para a quantidade de procura. Ou seja: a quantidade de mortos dadores é muito inferior à quantidade de pessoas necessitadas. Até porque temos outros factores a ajudar para que este prato da balança sofra uma maior inclinação: as pessoas estão mais expostas à poluição, a medicina chegou mais longe e é hoje capaz de mais feitos, pois no passado um doente estaria simplesmente condenado a vir a falecer. As pessoas são também mais sedentárias e abusam dos limites. Quem fuma, quem bebe e quem vive em atmosferas que sabe lhe serem nocivas e continua a ter estes comportamentos de risto até lhes doer.


Lamento que na televisão não passem mais documentários e notícias sobre este tema. Mas vou deixar aqui escrito, tudo o que já ouvi falar a respeito de transplantes, transplantados, colheita de órgãos, tráfego e dadores. Vai surpreender-se! Alguma desta informação fez com que repensasse tudo.


Por onde começar?! Há tanto para se dizer!


Vou começar pelo meu princípio: pelo xenostransplante e pela mecânica.


A necessidade humana de substituir órgãos defeituosos por outros ou outra coisa que os ponha a funcionar, é uma necessidade antiga, sobre a qual muitos estudiosos e cientistas se debruçaram. O primeiro transplante de coração humano foi feito em 1967, antes do homem pisar a lua. Mas mesmo antes muitas outras experiências foram efectuadas. Uma delas foi a possibilidade de órgãos de animais poderem fazer a vez de um órgão humano. A ciência centrou-se no porco, por ser um animal com a fisiologia mais semelhante à do ser humano. Chegou-se a fazer transplantes e a acreditar no sucesso desta técnica. Desconheço agora os pormenores mas existem ou existiram pessoas cujo coração ou outro órgão no seu corpo não era mais o seu, mas o de um animal.


Outro caminho a seguir será o uso de aparelhos mecânicos que consigam reproduzir as funções dos órgãos a morrer. Devo dizer que é neste ponto que sinto um tanto de revolta. Pelo que consegui compreender através da informação a que fui submetida, esta possibilidade é a melhor escolha possível. Não compreendo porquê não existem mais avanços nesta área.
A inserção de aparelhos mecânicos seria uma mais-valia em todos os aspectos da vida humana. Primeiro que tudo, terminava com o tráfego.
.
Por todo o mundo mas principalmente nos países muito pobres, são cometidos rituais macabros de pura violação aos direitos humanos. Tudo porque um órgão vale mais que ouro no mercado negro.


Um indivíduo de recursos de um país desenvolvido, se souber que consegue um órgão no mercado negro, aproveita as brechas da legislação, viaja para ser operado num terceiro mundo qualquer e regressa ao seu país, num estado de saúde que não experimentava à muito. Para tal só teve de fechar os olhos à forma como obteve de novo a dádiva da vida. Claro que o desejo é legítimo, mas a forma como muitas vezes se concretiza, é terrível. Prova que quem tem dinheiro compra tudo. Inclusive a vida de meninas que são assassinadas para extracção de órgãos ou de homens e mulheres que acordam com uma misteriosa incisão lateral por lhes ter sido removido um rim enquanto estavam desacordados. Existe também o caso de a extrema pobreza levar uma mulher, por exemplo, na Índia, a vender o seu próprio rim por uma ninharia e depois, sente-se sem energia para continuar a levar a vida dura que sempre levou ou lidar com efeitos secundários que desconhecia poderem existir.
.
Na América foi perguntado a um casal a quem o filho recém-nascido acabara por falecer, se autorizava a doação de órgãos. O casal reflectiu e decidiu que gostaria de enterrar o bebé inteiro na terra. Passados dois meses receberam uma conta do hospital. Nessa factura vinha um extracto de quatro páginas, indicando detalhadamente cada intém retirado ao corpo daquela criança. Os pais ficaram horrorizados.


Por tudo isto e mais, não entendo porquê não se investe no uso e estudo de órgãos mecânicos. Serão as questões económicas que ditam estas escolhas?


Um indivíduo transplantado compra também uma despesa vitalícia na farmácia. É grande e dispendiosa a quantidade de fármacos que um indivíduo tem de tomar para levar o seu organismo a aceitar aquele órgão que não lhe pertencia a trabalhar para si. E por maior sucesso que a cirurgia prometa ser, a esperança média de vida é sempre um risco, uma incógnita. Tanto pode ter “comprado” ao tempo mais dois anos, como trinta. E durante esse período a indústria farmacêutica tem um cliente que a ela recorrerá todos os dias. O transplantado é co-dependente de fármacos.


Depois, infelizmente, vêm aqueles que vou chamar de (e desde já peço desculpas se ferir susceptibilidades) “transplantados ingratos”. Trata-se, a título de exemplo, dos indivíduos que não tomam as devidas precauções após o transplante. Como é o caso de um senhor que vi numa peça exibida pela Sic. Este português recebera um transplante duplo de pulmão (irei confirmar se foi mesmo de pulmões). Por causa do transplante, o indivíduo tinha de usar máscara devido ás impurezas no ar. Outra coisa que ele não podia fazer, era dedicar-se ao seu hobbie favorito: criação de pombos. É sabido que os pombos e as suas fezes são do pior que existe para a saúde humana. Mas este indivíduo gosta demais dessa parte da sua vida para prescindir da satisfação que cuidar dos pombos lhe traz. Acontece que não existem tantos pulmões assim, para quem os receber poder arriscar-se a perdê-los. Ao menos assim me parece, que há algo de errado nestes casos.


São muitos os riscos, poucas as garantias, e muitas as incógnitas. Gostaria que esta fosse uma área onde se pisasse solo mais firme e, por isso, estou a torcer para que os interesses mudem e se passe a considerar mesmo a sério, o fim do recurso a órgãos humanos em substituição de outros e se passe a olhar em frente, em direcção á tecnologia. Em laboratório já se consegue muita coisa: fazer pele artificial, cultivar células, moldar uma orelha e criá-la em pele. Porquê não ir mais longe? Afinal, a lua, os planetas e todo o mistério, está dentro de nós.
.
Tanto assim é que afloro agora outro assunto mais transcendente sobre a transplantação de órgãos humanos: a transferência.
.Tenho gravado algures um documentário sobre pessoas transplantadas que começaram a ter sonhos, visões e emoções após o transplante. Vieram a descobrir que nos sonhos escutavam o nome do indivíduo cujo órgão possuíam agora. Em sonhos viam-lhe o rosto. Os desejos mudaram para ficarem de acordo com os do falecido dador. Acredite quem quiser. Eu acredito. Há mais mistérios entre a terra e o céu... já se diz.
.
Mas não é mistério. É energia. O homem não compreende totalmente a energia. Já Heinstein e outros fizeram as suas tentativas.
.
Em Portugal tudo é anónimo. O dador é anónimo, a identidade do receptor também. Sou contra o anonimato. Acho que uma família que sabe que um órgão de um ente querido, por sua vontade, estaria destinado a ajudar a viver uma outra pessoa, tem o direito de saber para onde foi e para quem. Eu quereria saber, embora não queira agora me imaginar a passar por isso. Mas eu ia querer saber se foi para a China, para o Tibete, para o Alentejo, para homem ou para mulher, para menina ou menino, com que idade, com que estilo de vida. Acho bem, acho de direito.
.
Termino com o pensamento naqueles que vivem uma realidade que pessoalmente desconheço e espero nunca vir a conhecer. A todos aqueles que neste instante vivem esta situação na primeira pessoa, desejo tudo de bom e mais ainda.

1 comentário:

  1. se depois de morto os meus orgãos podem salvar uma vida eu fico feliz,sempre é melhor salvar uma vida do que dar de comer aos bichos,pois julgam o quê que vão ficar inteiros para sempre?e se a sua vida depender de um transplante também o nega?

    ResponderEliminar

Partilhe as suas experiências e sinta-se aliviado!