quinta-feira, 17 de abril de 2014

Nem toda a gente que anda aos caixotes procura o que comer

Há umas semanas passava eu pela ciclovia paralela a uns prédios quando reparo num homem a levantar o tampo de um dos dois caixotes de lixo que estava a vasculhar. Nisto caem ao chão uma série de bobines. Sim, bobines de filmes de 35mm ou 8mm (ainda se lembram delas?), nas suas caixas redondas.


Colocadas no lixo como se nada fossem... eu fiquei imensamente curiosa por descobrir o conteúdo daqueles filmes. Seriam os filmes caseiros de alguma família? Seriam filmes outrora comercializados? Uma coisa achei porém poder concluir: aquele homem conhecia o conteúdo daqueles contentores e apressou-se a se apossar dele.
O homem  removeu também dois peluches do interior do outro contentor - uma Minie e um Mickey.


Gostava de ter visto mais mas foi o que percebi de passagem. O lixo, meus caros, não é só um lugar onde os esfomeados se dirigem para tentar tirar a barriga de misérias. Também são lugares muito concorridos para pessoas que procuram um ganho fácil. 

Durante anos habituei-me a ver nas paredes do corredor de casa uns quadros reproduzindo as quatro estações do ano. Achava-os bonitos mas não sabia do que se tratava. Eram espelhados e tinham o desenho de damas em vestidos esvoaçantes, numa paisagem ora de Primavera, ora de Verão, de Outono ou Inverno. Agora sei que se tratava de reproduções de gravuras da altura da arte nova*, da obra do ilustrador Alphonse Mucha. Naturalmente conhecia aqueles quadros de trás para a frente. Cada marca da moldura, cada mancha ou minúsculo risco. E quando estes quadros passaram a decorar outra casa, conheci-lhes também as novas marcas. Mas um dia o conteúdo dessa casa foi na sua grande maioria para os contentores de lixo - o que agora mais do que antes considero pouco correto. 


Um ano ou nem tanto depois dos quadros terem sido deixados junto aos caixotes para serem levados (por quem quisesse ou pelos apanhadores de lixo) reconheci um na montra de um antiquário. A «lady Primavera» estava a olhar de novo para mim. E não existia qualquer dúvida que era o mesmo. Conhecia-os demasiado bem. Sempre olhei para eles. A moldura, particular e idêntica, tinha uma pequena mossa no preciso lugar. Não faço ideia do preço pedido mas ali estava a prova: lixo para uns, riqueza para outros.


* movimento artístico desenvolvido nas últimas décadas do século XIX, um cruzamento entre a arte clássica e a arte industrial, a passagem da pintura para a arte gráfica

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